quinta-feira, 8 de abril de 2010

pois é...

- O que a gente vai comer hoje?

Uma pergunta simples e rotineira. Aparenta inocente, mas é capaz de alcançar níveis profundos no conhecimento amoroso. O que vamos comer envolve vontades reprimidas, jogo de adivinhação, habilidade de negociar. Apesar do risco, Estela lançou a sorte.

- Vai, Beto. Pode escolher, prometo que não questiono.
- Hambúrguer. Vamos lá no Chapadão do Pepo.
- Beto.
- O quê? Não era pra eu escolher?
- Hambúrguer? Do Pepo ainda? Ele não deve lavar aquela chapa há anos. Se fizesse uma lipo naquele chapa dava pra abrir uma fábrica de sabonetes.
- Ah, não diz isso. É essa pegada rústica que dá o gostinho bom pro sanduba. Gostinho de chapa.
- Amor, até queijo-quente tem gosto de bacon quando sai daquela chapa. Aquilo tem é gostinho de infarto. Não esquece que você já tá ali na portinha dos 40, Beto.
- Tá bem, nesse papo eu não quero entrar. De novo não. Então diz você o que quer comer.
- Uma coisa leve. De repente uma salada.
- Mentira. Não é possível. Com esse friozinho que atravessa o estômago e deixa só um vácuo pra trás, não, não acredito que você queira salada.
- Não que eu seja louca por alface. Mas alguém tem que cuidar da saúde, né?

Todos têm o direto de comer salada e bufar em uma esteira de academia com trajes especialmente projetados para transparecer cada celulite. Têm também o direito de dizer que é tudo em nome da saúde, embora seja apenas uma desculpa para não parecer tão fútil assumindo que é sim pelo corpo.

- Então vamos naquele bar que vende de tudo. Você pede a salada e eu peço uma pizza.
- Ah, Beto. Mas aquele lugar não tem charme.
- Ué. Mas eu achei que você queria uma salada. Não sabia que tinha que ter charme.
- Poxa, mas comer em lugar feio faz a comida até descer mal. Era pra ser um programinho.
- A gente combinou que ia segurar esse mês, pra dar a entrada no apartamento. Achei que o programa era esse. Dar a entrada.
- Mas pagar 20 reais a mais pra ir num lugar bacana não tira a chave da nossa mão.
- Ta. Então vamos tentar de novo. Onde você quer ir?
- Deixa eu pensar. Olha. Já que nosso aniversário de casamento é daqui a uma semana, a gente pode comemorar antecipado. O que acha?

Mesmo percebendo a descarada tentativa de enganar a si mesma e burlar as regras de não-gastar, Beto entrou no jogo. Seu estômago já roncava tanto que em alguns minutos poderia até participar do diálogo.

- A gente também pode inventar que estamos comemorando 4 anos, 11 meses e 3 semanas.
- Isso, Beto, isso, adorei!
- Tá. Beleza. Vamos lá então. Mas semana que vem, já sabe. Contenção de despesas.
- Combinado, prometo.
- Vou lembrar, hein? Não vale nem sapato.
- Não, juro.
- Nem vem falando que é promoção.
- Ai... nem?
- Nem. Então vamos recomeçar. Onde vai ser essa nossa atípica, revolucionária e supercharmosérrima comemoração?
- Agora quero uma massa.
- Massa? Mas e o algodão doce da festa do seu sobrinho, que você falou que foi direto pro culote? E a tal salada?
- Ocasião especial pode. No resto da semana eu como salada. Olha, pode ser pizza também. Quer saber Beto? Vou abrir uma exceção.
- Exceção?
- É, vou deixar você escolher. E vou aceitar.

Depois de tantos anos, Beto já era capaz de entender melhor a fascinante mente de Estela. Sabia bem onde ela queria chegar com “vou deixar você escolher”. Era hora de tirar o peso de uma escolha fatal dos ombros dela e assumir a decisão. Com toda a sensibilidade que a fome ainda permitia, disse sem medo:

- Amor... você sabe onde eu quero ir. Eu já falei. Mas você não quis.
- Hambúrguer do Pepo?
- ... é...

Uma mínima expressão de vítima foi o suficiente para Estela abraçá-lo.

- Ai, o que eu não faço por você.

“Por mim, sei, por mim”, pensou Beto enquanto ria por dentro. A verdade é que ele não se importava em se fazer de desentendido. Se fosse preciso encenar tudo novamente, ele faria. Por Estela e pela maionese do Pepo.

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